Mestre Manuel Ceia - Memórias
Senti desde sempre uma grande atracção pela cultura japonesa. Assim, quando em 1964 tive oportunidade de me deslocar a França para uma pequena estadia de três meses, um dos meus objectivos era procurar um clube onde se praticasse karate. O único clube que encontrei foi a AFAM (Académie Française des Arts Martiaux), considerado o primeiro dojo europeu de karate, na Rue de la Montagne Ste. Geneviève, nº. 34, onde pontificava o Sr. Henri Plée, sendo este o meu primeiro contacto com o karate, ainda que puramente visual.
De regresso a Portugal a minha intenção de encontrar um clube para a prática das Artes Marciais mantinha-se cada vez mais firme. Nesses tempos o panorama das artes marciais em Lisboa era bastante árido, ouvia-se falar exclusivamente de judo e comecei a esmorecer um pouco até que um amigo meu, José Luís – mais tarde também praticante de karate com Me. Murakami na Cidade Universitária de Anthony, nos subúrbios de Paris – me informou que tinha acabado de se inscrever num clube denominado Academia de Budo, na Rua Visconde Seabra, nº. 18, onde se praticava judo, defesa pessoal e karate. Inscrevi-me nesse mesmo dia e comecei pela prática do judo como era norma na Academia de Budo. É necessário dizer que o ensino do karate era feito durante as aulas de judo e nem sempre; recordo-me do Dr. Pires Martins, a dada altura da aula, fazer uma pausa e com um certo sentido democrático, perguntar aos alunos quem desejava a partir daí praticar karate, isto quer dizer que no prosseguimento da aula, a disciplina praticada era decidida por votação. O Dr. Pires Martins, que foi efectivamente o nosso primeiro professor de karate, tinha tido contacto com o karate e mais exactamente com Me. Yoshinao Nanbu, na AFAM durante de uma viagem efectuada pela Europa na companhia de António Hilmar Schalck Corrêa Pereira, dono e director da Academia de Budo. O karate então praticado era muito incipiente, mas tudo era compensado pela grande entrega por parte do Dr. Pires Martins e pela extraordinária dedicação dos praticantes. O desejo de conhecimento e os esforços para o alcançar eram indescritíveis, para alguns a média de treino quotidiano era de três a quatro horas. É de realçar que estes “pioneiros”, para além do karate, praticavam também judo e defesa pessoal. No âmbito do karate e estou a falar dos anos 1964/66, devo mencionar como companheiros de sempre Mário Rebola e Alexandre Gueifão, Raul Cerveira só começou verdadeiramente mais tarde pois o seu interesse nessa época era o judo, chegando a ganhar o Campeonato na sua classe e obtendo o segundo lugar na classe aberta no Judo Clube de Portugal em 1965.
O Dr. Pires Martins por intermédio do Sr. Corrêa Pereira, que possuía uma das maiores colecções da Europa de livros e filmes sobre as Artes Marciais, conseguiu arranjar-nos filmes de karate editados pela Japan Karate Association, nos quais, para além dos movimentos básicos, kumite, etc, se encontravam também todas as katas com bunkai do programa técnico dessa associação. Aí se podiam ver entre outros, Mes. Enoeda, Mikami, Kase, Asai e até Nakayama executando as katas Unsu e Tekki Sandan. Posso afirmar que durante bastante tempo esses filmes bem como o único livro de karate à venda em Portugal – The art of the empty hand fighting de Nishiyama - foram os nossos professores, visto que estudei esses filmes vezes sem conta numa visionadora de montagem na Academia de Budo, por vezes até altas horas da noite, pois o Dr. Pires Martins tinha atribuído uma chave da Academia aos membros técnicos.
Em meados de 1965 numa reunião após um jantar em casa do Dr. Pires Martins foi estabelecida uma nova estrutura para o funcionamento da Academia e o karate tornou-se uma disciplina verdadeiramente independente para a qual fui indigitado como responsável. Toda a orientação das aulas tinha como base os filmes e o livro atrás mencionados, e penso que o resultado não foi mau pois uns tempos mais tarde, quando já me encontrava em França, apareceu na Academia um Cinto Negro Sul Africano da Japan Karate Association de nome Ronald Ian Clark, que ficou algo espantado com o nível dos praticantes, tendo em consideração a falta de um professor qualificado. As aulas eram esquematizadas segundo o livro referido e muitas vezes com combate livre, mas não numa óptica desportiva, coisa que parecia agradar sobremaneira aos praticantes. Ainda hoje me faz sorrir o que se passou quando a uma certa altura decidi interditar o combate livre aos graduados abaixo de cinto castanho e Fragoso Fernandes – pioneiro do culturismo em Portugal e grande amigo de Nicolau Breyner, que também foi aluno da Academia de Budo – veio ter comigo dizendo-me meio a brincar: “não me tires o combate livre pois é a razão da minha existência”,claro está que o “Papanças”, nome pelo qual era conhecido afectuosamente entre os amigos, continuou a fazer os seus combates podendo assim continuar tranquilamente a sua existência. Fragoso Fernandes, apesar de uma aparência um tanto ou quanto séria, tinha um sentido de humor extraordinário. Numa ocasião em que Alexandre Gueifão estava a dar uma aula, encontrava-se ele fora do tapete executando levantamentos com pesos, cerca de cento e tal quilos o que para ele era absolutamente normal, mas fazendo algum barulho com os mesmos. Alexandre Gueifão mandou parar a aula e dirigindo-se-lhe disse: “Sr. Fragoso Fernandes largue já isso pois o barulho está a prejudicar a aula”, ao que ele replicou “Mestre Gueifão largo mesmo?”e Gueifão “largue já!”; o problema é que na altura em que ele foi interpelado encontrava-se de braços esticados acima da sua cabeça com os cento e tal quilos, assim quando os largou e caíram no chão o estrondo foi imenso e alguns segundos após apareceu o Dr. Pires Martins espavorido perguntando o que se tinha passado pois no seu escritório, situado no rés-do-chão exactamente por baixo do sítio onde tinham caído os pesos, a caliça do tecto tinha-lhe caído em cima, Fragoso Fernandes imperturbável respondeu-lhe que Mestre Gueifão lhe tinha dito para largar os pesos.
No dia 28 de Fevereiro de 1966 a União Portuguesa de Budo - representante do Budo perante o Estado pelo seu Estatuto aprovado por despacho de Sua Excelência o Ministro do Interior de 6 de Fevereiro de 1960 – decidiu atribuir-me o grau de 1º. Dan. No mês seguinte decidi organizar o primeiro kangeiko de karate em Portugal o qual teve lugar na Academia de Budo de 1 a 15 de Março de 1966, com um treino especial no último dia, de manhã muito cedo, na Paria da Torre (na foto ao lado a partir da esquerda: Manuel Ceia, Alexandre Gueifão, Mário Rebola e José Paulo Simões) no qual tentando reproduzir a dureza dos kangeikos no Japão treinámos combate livre dentro de água, gelada nessa altura do ano; aliás José Paulo Simões que era desenhador de profissão fez vários “comics” sobre este kangeiko, alguns podem ser vistos nos anexos.
Em Maio de 1966 quando comuniquei ao Dr. Pires Martins a intenção de me ausentar para França definitivamente e após as suas tentativas de dissuasão sem efeito, pôs-se a questão da substituição do responsável para o karate; a minha indicação incidiu sobre Mário Rebola, indicação com a qual o Dr. Pires Martins aquiesceu. Mário Rebola tornou-se assim responsável pelo karate e durante os anos que passei em França sempre trocámos correspondência assim como tivemos alguns encontros, visto que Mário Rebola se deslocava com alguma frequência a Paris.
A minha decisão de partir em Maio tinha como objectivo assistir aos primeiros Campeonatos Europeus de Karate que se realizavam em Paris nesse mesmo mês no Stade Pierre de Coubertin. O mais relevante nesses campeonatos foram sem sombra de dúvida as demonstrações feitas pelos japoneses da JKA, tendo como ponto alto uma extraordinária demonstração de combate livre entre Me. Kanasawa e Me. Kase durante a qual consegui vislumbrar a um dado momento uma certa “atrapalhação” por parte de Me. Kase, vim mais tarde a saber – por intermédio de Me. Murakami – que a demonstração tinha sido combinada e mesmo assim, no tal momento, Me. Kase tinha sido atingido por um tzuki de Me. Kanasawa, tal era a diferença entre os dois.
No mês de Julho seguinte inscrevi-me no habitual estágio de verão da AFAM, organizado por Henri Plée e decidi apresentar-me com um cinto castanho para evitar problemas e perguntas dada a minha condição de único estrangeiro nesse estágio. O primeiro dia de estágio era sempre composto por visionamento de filmes japoneses e assim passámos algumas horas assistindo a filmes antigos de vários mestres dos quais o que mais me impressionou foi Gogen Yamaguchi do Goju Ryu, conhecido pelo Gato, pela sua deslocação suave, flexibilidade e rapidez. No dia seguinte, praticamente o primeiro dia de estágio fiquei agradavelmente surpreendido ao ver entrar um jovem japonês que vim a saber tratar-se de Me. Yoshinao Nanbu, na altura 4º. Dan e campeão universitário do Japão. Escusado será de dizer que durante todo o estágio Henri Plée falava e Me. Yoshinao Nanbu executava, e bem, pois entre outras coisas lembro-me de ver Jean Pierre Lavorato, um dos cintos negros mais rápidos na altura, atacar com oi tzuki a toda a velocidade e Nanbu saltar da posição hachiji dachi para o lado e executar yoko tobi geri à cara. Entretanto Henri Plée continuava a falar e para explicar a intenção que se devia pôr num tzuki tinha esta frase digna de um “Mestre”: “il faut descendre le gars”, descendre é descer mas também significa em calão, acabar com, assim a frase fica “é preciso acabar com o gajo”. No antepenúltimo dia de estágio ouvi Henri Plée dizer algo que me deixou espantado: “amanhã tragam sapatos de ténis pois é dia de combate livre”, e efectivamente no dia seguinte lá estava a quase totalidade dos praticantes com sapatos de ténis para se protegerem de eventuais ferimentos. Depois de fazer combate com alguns praticantes apareceu-me finalmente à frente Me. Yoshinao Nanbu, saudação e como ele não tomava a iniciativa aventurei-me com um mae geri à direita seguido de um mawaishi geri à esquerda que como era de esperar ficaram muito aquém do objectivo, logo após ele entrou com gyaku tzuki e recuou sem me dar tempo de reacção, o resto do combate teve sempre o mesmo aspecto, salvo quase no fim, quando tentou uma balayage (de ashi barai) à qual eu consegui resistir, seguida de uma outra e de uma terceira um pouco mais alto ou seja no gémeo sem que conseguisse derrubar-me, notei um pouco de perplexidade na sua cara pois era um dos seus movimentos favoritos seguido de gyaku tzuki no solo e atribui o facto de não ter caído aos treinos de judo bastante duros que tinha feito na Academia de Budo.
No último dia, reservado para a habitual prova de resistência - nesse ano mil mae geris - e para os exames, estava eu sentado sem nenhuma intenção de me apresentar quando Me. Yoshinao Nanbu, que estava sentado a meu lado me disse “essayez” (tente), levantei-me e apresentei-me a exame para 1º. Dan. No final, Henri Plée falando para a aula, explicou que eu merecia aquela graduação mas visto não ter no mínimo dois anos de licença paga à Federação Francesa era impossível conceder-ma, no entanto e com o seu habitual sentido comercial, ao assinar o meu diploma de estágio disse-me: “vou escrever no seu diploma que fez um estágio para professor e árbitro de karate, talvez lhe seja útil em Portugal”, de seguida obtive também a assinatura de Me. Yoshinao Nanbu no diploma, o que para mim tinha mais importância.
No ano seguinte, em 1967, foi a vez de Mário Rebola e José Paulo Simões se inscreverem no estágio da AFAM. Fui esperar o Simões à Gare d´Auterlitz, que fez mais um “comic” acerca da sua chegada e no primeiro dia de estágio fui observar o treino, que começou atrasado pois Me. Kase tardava em aparecer; Henri Plée, que nunca o tinha visto, estava inquieto ao ponto de perguntar quem era ele; alguém lhe respondeu ser o japonês que tinha feito as fotos para o livro de karate da colecção Marabout (colecção de pequenos livros de bolso de divulgação) e Henri Plée de retorquir “ah, c´est celui-là, il n´est pas très emballé”(ah, é esse, não está muito embalado”; na realidade as fotos tinham sido tiradas um pouco “à pressa” mas o facto é que todos os praticantes gostaram do estágio estando presentes alguns elementos da equipa francesa de karate da altura, Dominique Valera, Guy Sauvin, Setrouk e Patrick Baroux que ficaram espantados ao verem um ura mawaishi, desconhecido na altura em França, e explicado amplamente por Me. Kase.
Nessa época treinei em alguns clubes, sempre por curtos espaços de tempo e sem nunca me sentir satisfeito, a técnica e a organização das aulas era verdadeiramente lamentável o que não era de estranhar visto nessa época ser normal entrar num clube em Paris e encontrar um cinto castanho ou mesmo azul a dar aulas. Um dia quando me deslocava no Boulevard de Vaugirard em, Montparnasse, deparei-me com um poster publicitário de um clube de karate cujo professor era Me. Tesuji Murakami, o que me deixou espantado se tivermos em consideração o que foi atrás mencionado em relação aos clubes em Paris. Uns dias depois desloquei-me à Maison des Jeunes et de la Culture na Rue Mercoeur, nº. 4 e nesta primeira visita não vi Me. Murakami porque se encontrava no estrangeiro dirigindo um estágio, assim assisti à aula orientada por Michel Hsu e fiquei convencido com o que vi, mas após ver Me. Murakami fiquei absolutamente conquistado. Inscrevi-me uns dias depois já com Me. Murakami presente e assim tornei-me o seu primeiro aluno português. Decidi pôr um cinto branco e recomeçar tudo de novo pois na minha opinião o que ali se praticava era o verdadeiro karate e o que tinha feito até então não tinha ali qualquer cabimento. No fim da primeira aula Me. Murakami perguntou-me onde já tinha feito karate e que graduação possuía, respondi-lhe explicando o que se passava no panorama do karate em Portugal e que preferia recomeçar com cinto branco – coisa que Fernando Neto quando chegou a França mais tarde, em 1968, também fez - Me. Murakami disse simplesmente “c´est bien”(está bem) e afastou-se.
Me. Murakami, que além do karate, também praticava kendo, aikido e judo no Yoseikan Budo de Me. Minoru Mochizuki em Shizuoka, tinha sido contactado por Jim Alcheik, que funcionava como intermediário de Henri Plée, para lhe arranjar um professor japonês para o seu clube em França. Logo após a sua chegada a França no dia 3 de Novembro de 1957 a Marselha viajando de barco, fez uma demonstração de karate na cidade de Avignon onde, entre outras coisas, executou a heian yodan e partiu uma prancha de madeira suspensa mas só o conseguindo à segunda tentativa o que, segundo ele próprio me contou, “tinha sido melhor pois os espectadores tinham ficado com a certeza de que era real”.
O facto do ano da sua chegada ao Ocidente para ensinar karate coincidir com o do falecimento de Me. Funakoshi levou Me. Murakami a escrever no Boletim Shotokai do Japão na rubrica Para a Festa da Reconstrução do Shotokan – Mensagens de Além-Mar:
«Desde que comecei a ensinar o karate na Europa, mais de vinte anos passaram. Foi com efeito, em 1957, na altura em que o grande mestre desaparecia, que eu efectuava os primeiros passos. Sinto um certo orgulho nesta coincidência, mas também o sentimento de uma missão, de um dever a cumprir».
Me. Murakami foi também o introdutor do kendo em França senão na Europa e um dos seus primeiros alunos nessa disciplina foi Jacques Fonfrède o qual me contou serem as suas aulas terrivelmente duras e esgotantes. Quando os alunos chegavam ao dojo para se equiparem já Me. Murakami se encontrava equipado, com armadura, em seiza num canto do dojo esperando por eles. Jacques Fonfrède durante um combate não sabendo mais o que fazer em relação às investidas de Me. Murakami refugiou-se esgotado nos balneários continuando aí também, a ser perseguido por ele.
No fim do seu contrato no clube de Henri Plée, Me. Murakami soube que o mesmo - redigido em francês, língua que ele desconhecia na altura – o impossibilitava de continuar a dar aulas em França. As “relações” entre Me. Murakami e Henri Plée tornaram-se péssimas tentando este último prejudicá-lo de todas as formas possíveis chegando mesmo a responder a alunos que indagavam sobre o paradeiro de Me. Murakami que ele tinha voltado para o Japão.
Recordo-me de Me. Murakami me ter contado, sorrindo, que bastante tempo mais tarde quando já era conselheiro técnico para a Federação Francesa de Karate, ao chegar a uma reunião e procurando um lugar para se sentar, Jacques Delcourt, presidente da Federação, lhe ter dito com um certo humor “sente-se aí, ao lado do seu amigo Plée”. O facto é que na altura durante um ano ou mais, devido a essas perseguições, Me. Murakami teve uma existência bastante precária para não dizer de sobrevivência.
Durante um certo tempo Me. Murakami deu aulas num clube histórico no Boulevard Auguste Blanqui onde se encontravam também os professores de judo Kawashi e Awazu e baptizou o seu dojo de Renseikan (casa da prática correcta). Mais tarde o clube da Rue Mercoeur tornou-se o dojo central, local onde se encontravam alguns dos antigos praticantes tais como Jacques Fonfrède, Tam, Michel Hsu, Quang, Ignatio, Michaux, Touchard, Daniel Bougoin, entre outros.
O shotokan praticado por Me. Murakami era muito diferente do da JKA, trabalhava-se em descontracção, peso na perna da frente, pés praticamente numa linha e posições baixas, sim, já na altura era assim. Durante algum tempo treinei com as mãos abertas para perder a contracção, numa outra altura todos praticaram tzuki com as falanges do indicador e do médio saídas, sem fechar completamente a mão só com tensão no polegar e no dedo mindinho, também para impedir a contracção. As aulas eram muito duras e não havia lugar para negligenciar a seriedade no treino que era uma exigência constante de Me. Murakami. Se um praticante atingisse o seu oponente durante ippon kumite e se dirigisse ao seu encontro preocupado com o seu estado, era imediatamente afastado por um dos mais antigos com frases como, “não tens nada que te preocupar, ele sabia qual era o ataque e não defendeu, a culpa é dele”; era impensável um praticante recém graduado, ao ser chamado para executar a kata da sua nova graduação, dizer que não a conhecia, pois era imediatamente questionado por Me. Murakami sobre o que tinha estado a fazer durante os meses em que tinha estado sentado enquanto os seus companheiros executavam a dita kata.
Nesses tempos Me. Murakami fazia combate livre com quem lho pedisse, e fazia-o com a mão direita atrás das costas entalada no cinto, quer dizer que utilizava unicamente a mão esquerda para defender e contra atacar e os pés bem entendido. Em relação aos pés do Mestre, dada a sua dureza, Michel Hsu tinha o hábito dizer “os pés do Mestre são ferros de engomar”e eu tive a prova disso quando durante uma demonstração feita na Cidade Universitária de Anthony, Me. Murakami ao fazer um mae geri controlado tocando-me ligeiramente no peito me deu a sensação de este ter sido aflorado por um pedaço de ferro muitíssimo pesado.
A foto acima foi tirada no clube de Mercoeur, e apareceu na revista karate francesa ilustrando o artigo a “Eficácia Absoluta”; o ataque em tzuki de Michel Hsu foi efectuado à máxima velocidade, de resto quando questionado pelos outros praticantes porque atacava sempre o Mestre à máxima velocidade respondia “o mestre é ele”e acho que esta era exactamente a atitude que Me. Murakami desejava, trabalho real, sério, e sem margens para meios-termos na entrega.
Em 1968 quando Me. Murakami aderiu ao shotokai lembro-me de sermos visitados várias vezes em Mercoeur por Me.Harada com os seus alunos, os quais trabalhavam muitíssimo baixo, literalmente com a perna da frente paralela ao solo, é estranho a mudança radical que mais tarde ele operou na sua prática e as suas razões, mas isso é uma outra história sobre a qual viremos mais tarde.
A mudança do shotokan que praticávamos para o shotokai não foi difícil, visto que já trabalhávamos em descontracção e o corpo foi-se habituando e moldando às indicações dadas por Me. Murakami, sobretudo em termos sensitivos, e ouso dizer que a transição foi feita naturalmente com a sensação de passarmos para um patamar mais qualitativo sem refutar as bases já existentes. Ouvi muitos “observadores” exteriores dissertarem sobre a adaptação de Me. Murakami ao shotokai sem nunca perceber bem o que queriam referir ou insinuar, sobretudo tendo em consideração que nunca tinham treinado com ele e provavelmente também não sabiam muito bem o que era o shotokai, O facto é que nos anos 70 a sua reputação que desde sempre fora grande tornou-se ainda maior e como era Delegado Oficial do Shotokai para a Europa, o dojo de Mercoeur era visitado por japoneses enviados pelo shotokai do Japão e por praticantes cintos negros de outros estilos, sobretudo shotokan e wado ryu, que praticavam connosco para “experimentar” o estilo. A uma dada altura um praticante de shotokan que em ippon kumite defendia sistematicamente os ataques à cara com haishu, braço flectido, desviando-os para o lado foi interpelado por Me. Murakami relembrando-o que a defesa era jodan uke, este perguntou-lhe se não se podia defender daquela maneira, respondendo-lhe Me. Murakami: “você pode defender de qualquer maneira, até com uma sapatada, mas eu disse para treinar jodan uke”. Muitos outros iam simplesmente assistir, recordo-me de ver várias vezes os amigos de Michel Hsu do boxe francês – Michel Hsu era também um combatente de topo em boxe francês – assistindo bastante interessados aos treinos e submergindo-o com perguntas no fim da aula.
Em 1968 dada a minha correspondência com Mário Rebola, onde eu me alargava em elogios mais que justos a Me. Murakami, ele decidiu deslocar-se a Paris para o observar. Chegados a Mercoeur sucedeu-lhe a mesma coisa que me tinha sucedido a mim na minha primeira visita i.e. Me. Murakami estava ausente em Itália dirigindo um estágio, assim treinou com Michel Hsu e obviamente ficou convencido. Uns tempos mais tarde quando no fim dum treino falava com outros praticantes sobre a situação do karate em Portugal e a falta de um professor japonês qualificado para dirigir estágios, Michel Hsu que me tinha ouvido, disse-me para falar com Me. Murakami pois isso interessá-lo-ia seguramente. Falei com Me. Murakami e seguidamente pus-me em contacto com o Dr. Pires Martins por carta explicando-lhe as razões pelas quais na minha opinião Me. Murakami era o mestre ideal. Depois de também ter ouvido a opinião de Mário Rebola, e de alguma correspondência trocada, pediu-me para servir de intermediário a fim de não surgirem posteriormente problemas com a organização do estágio que ficou agendado para Agosto de 18 a 30 de 1969. O contrato para o estágio foi oficializado pelo Dr. Pires Martins em carta dirigida a Me. Murakami que habitava na altura no Quartier Latin, mais exactamente na Rue du Cardinal Lemoine, num pequeno quarto onde me desloquei para obter uma foto do mestre, tal como o Dr. Pires Martins me tinha pedido na sua carta, para fazer publicidade ao estágio num jornal de Lisboa.
Pode-se pois considerar que o shotokai existe no nosso País desde 1969 por intermédio do Grupo Murakami Kai, legalizado mais tarde sob forma associativa em 31 de Dezembro de 1977.
Em 1970 participei no estágio anual organizado por Me. Murakami no sudoeste de França em Sérignan Plage, onde cheguei com um dia de atraso devido às tribulações de uma viagem feita em auto-stop.
O problema era que eu tinha ficado com a responsabilidade de arranjar a tenda onde os portugueses pernoitariam e como é natural não fui muito bem recebido por eles – Mário Rebola, Sousa Pascoalinho e Fernando Neto. No dia seguinte às sete horas da manhã, hora de início dos treinos matinais, ao ultrapassarmos a duna para nos dirigirmos ao local de treino estranhámos ver todos os praticantes já executando a ginástica, Me. Murakami olhou e perguntou-nos que horas eram, um de nós respondeu-lhe serem sete horas e três minutos, estávamos portanto três minutos atrasados e como eu era o último fui obrigado a fazer toda a praia, quase duzentos metros, em saltos de coelho – embora haja quem diga que todos os lusitanos fizeram esse percurso, posso afirmar que não vislumbrei ninguém ao meu lado – ao chegar ao fim levantei-me olhando para aquele grupo minúsculo lá ao fundo e pensei, finalmente, quando notei que Me. Murakami nessa mesma altura me gritava algo, agitando o braço, e que para meu desespero se revelou ser, “Ceia, pour revenir aussi”(Ceia, para voltar também). Se alguma vez me tivessem dito que seria capaz de o fazer não o acreditaria, mas sucedeu e o que parecia um “castigo” transformou-se uma vez mais num treino para ultrapassar os meus limites.
Nos anos 70 fui várias vezes convidado para jantar em casa de Me. Murakami, coisa que o Mestre fazia com vários alunos, sós ou em grupo, para conversar sobre a organização da Murakami Kai e a prática do shotokai. Ainda hoje me lembro do seu primeiro cão, um pequeníssimo caniche, que o esperava sempre com os seus chinelos na boca à entrada do seu apartamento na Rue d´Issy em Boulogne. Um dia, ao sair de sua casa depois de um jantar e como ele tinha trazido o cão para passear, aventurei-me a perguntar-lhe qual tinha sido a razão para ter escolhido um animal tão pequeno, a resposta na realidade teve bastante lógica, “quem arranja cães grandes é porque tem medo e necessita de ser defendido, como eu não tenho esse problema escolhi o cão que verdadeiramente me agrada”. Numa outra ocasião tive a oportunidade de ver as fotos que eram destinadas à ilustração do livro de katas que era sua intenção editar, eram caixas cheias e uma vez mais fiquei impressionado com a perfeição das técnicas, não sei onde se encontram hoje em dia essas fotos mas é uma pena não estarem visíveis para os praticantes. Anos mais tarde intrigado por o seu livro não ter sido editado questionei-o sobre o assunto e uma vez mais tive uma prova da rectidão do seu carácter ao ouvir as razões: “Mestre Egami vai editar um livro sobre o shotokai traduzido em inglês, portanto eu não posso editar o meu”.
Em Mercoeur as aulas continuavam exigentes como sempre, lembro-me de alguém perguntar a um dado momento a outro praticante “se já tinha desmaiado ao fazer midare com o Mestre”, pois Me. Murakami levava-nos aos limites, mesmo quando já nos arrastávamos pelo chão esgotados ele continuava incitando-nos dizendo “ataque, ataque!”.
Numa dada altura em que fazíamos tzuki em kiba dachi ao chegar a meu lado disse-me “Ceia, mais baixo”, eu bem tentei mas não consegui o que o levou a dizer mais umas duas vezes “mais baixo, mais baixo”como fiquei exactamente à mesma altura levei um “caldo” que me fez estremecer; parei deixei cair os braços e lembro-me de ter pensado olhando-o “mas porquê isto? Ele não vê que não consigo baixar mais”; Me. Murakami olhou-me durante uns segundos começou a falar em japonês e afastou-se; acho que deve ter captado o que eu tinha pensado, que estava verdadeiramente a dar o máximo e foi provavelmente devido a esta ocorrência que nunca mais levei “caldos ou velinhas”. Mais tarde já em Portugal, Guilherme Morais perguntava-me constantemente qual a razão porque o Mestre nunca me tocava, até eu lhe ter contado o que se tinha passado. Essa questão por parte de Guilherme Morais era pertinente visto ser ele um dos praticantes mais contemplado com esses “mimos” por parte do Mestre, quando exemplificava alguma coisa com ele e não o fazia correctamente, isso levou-o mesmo a ter uns óculos especiais e reforçados destinados unicamente aos estágios pois estavam constantemente a voar pelo ginásio.
Todos conhecem a excelência do mae geri de Me. Murakami, mas eu vi algo que me deixou espantado; durante uma aula estávamos todos sentados enquanto Me. Murakami fazia combate livre com um aluno vietnamita, como habitualmente com a sua mão direita entalada no cinto atrás das costas, quando este desferiu um tzuki jodan sem controle, o Mestre desviou a cara mas o tzuki roçou-lhe ligeiramente o nariz e vieram-lhe as lágrimas aos olhos, parou imediatamente e disse “attendez”(espere), levou a mão aos olhos enquanto o aluno, infelizmente para ele, o olhava de soslaio com um pequeno sorriso um tanto ou quanto irónico, uns segundos depois o mestre disse-lhe “allez y”(vá) e a seguir o que vimos foi o aluno voar literalmente uns dois metros, bater na parede e ficar sentado ao nosso lado; o mae geri tinha sido controlado mas com um “pouco de peso” como se pode depreender.
Vou partilhar convosco o que penso poucos terem conhecimento; um dia atrevi-me (é mesmo a palavra) a perguntar ao Mestre se o seu tokuiwaza (golpe especial) não era o mae geri, olhou-me um instante, sorriu, e disse-me “é sim, mas à esquerda”.
Em 1976 Me. Murakami organizou a vinda de Me. Egami à Europa e fomos esperá-lo ao Aeroporto de Orly em Paris. Me . Murakami estava nervosíssimo, lembro-me de vê-lo andar de um lado para o outro conforme a hora se aproximava, o que foi notado por muitos alunos, nunca o tínhamos visto assim. Quando por fim Me. Egami chegou a primeira coisa que fez, com um enorme sorriso aberto, foi ir direito a Me. Murakami e abraçá-lo no momento em que este lhe fazia uma vénia. No dia seguinte tivemos um treino em conjunto em Beynes nos arredores de Paris, dirigido por Me. Miyamoto. O treino foi basicamente composto por aquecimento a dois, orientado por dois jovens japoneses, e a aula propriamente dita, unicamente kihon. No final Me. Murakami para “apresentar o trabalho dos seus alunos” mandou-nos fazer heian godan, subitamente mudou de opinião e acabámos por fazer taikyoku shodan.
Nesse mesmo ano, 1976, quando comuniquei ao Mestre a minha decisão de regressar a Portugal, foi-me pedido para me encarregar do Grupo Murakami Kai, para fazer “equipa” com Mário Rebola e Alexandre Gueifão, o que demonstrava existirem divergências no seio do grupo, e para lhe transmitir regularmente informações sobre o que se passava em Portugal, bem como para desenvolver mais o shotokai na Academia de Budo. O Mestre não sabia o que se passava com a Academia de Budo e só notava que havia muito pouca aderência aos estágios por parte desse clube; a razão por mim encontrada quando aí comecei a dar aulas foi tão só uma certa falta de confiança técnica quando eram comparados com outros clubes, sobretudo os clubes de Raul Cerveira, o qual exercia uma pressão psicológica sobre os seus alunos para que acreditassem serem os melhores, eles acreditavam e por extensão os outros também, existindo mesmo uma certa inibição por parte de alguns. É óbvio que a qualidade técnica dos praticantes da Academia de Budo era a mesma dos outros clubes, era unicamente necessário repor ideias claras nas suas mentes e treinos adequados. Uma repercussão deste estado de coisas, como já foi enunciado, era a pouquíssima aderência dos praticantes da Academia de Budo aos estágios com Me. Murakami, segundo alguns “para não fazerem má figura”; o facto é que três meses mais tarde, aquando do estágio em Queluz de Janeiro de 1977, esse clube que normalmente tinha uma representação nos estágios entre cinco a sete alunos enviou mais de uma vintena de alunos, o que era muito bom para um pequeno clube como era e tive o prazer acrescido de ver expressões de alívio e satisfação nalgumas caras após o estágio.
Conforme me tinha sido pedido por Me. Murakami tornei-me “os olhos e os ouvidos do Mestre” relatando-lhe regularmente o que se passava no País no âmbito do karate e mais especificamente no shotokai. Dentro do Grupo Murakami kai quem criava problemas nessa altura era Raul Cerveira, o qual até teve a desfaçatez de me convidar para me inscrever no Judo Clube de Portugal, segundo ele porque visto dar aulas na Academia de Budo “precisava de um clube para treinar”; o intuito era evidente, eu tinha acabado de chegar de França tendo treinado praticamente dez anos com o Mestre, logo se decidisse ir treinar para o clube onde o Raul Cerveira era o professor isso equivaleria a dizer que eu reconhecia ser ele em Portugal quem mais se assemelhava ao Mestre. Claro está que não acedi ao seu convite, as manigâncias de Raul Cerveira eram constantes e para ilustrar o que foi dito transcrevo algo que ele sempre dizia: “quando o Mestre não está cá é preciso alguém que diga isto faz-se assim”, ou seja ele ambicionava ser o representante do Mestre durante a sua ausência e assim ter o controle sobre os outros professores e todos os alunos. Estas estratégias levaram Me. Murakami, já informado, a expulsá-lo em Janeiro de 1978 durante uma reunião no Hotel D. Carlos em Lisboa. Durante essa reunião o Mestre explicou as suas razões para não poder continuar a trabalhar com ele, mas alguns alunos de Raul Cerveira achavam a decisão do Mestre “ilegal, antidemocrática”, etc, até que Me. Murakami se levantou e apontando com o dedo a porta de saída da sala lhe disse “partez” (parta). Esta reunião fica para a história do shotokai em Portugal pois deu origem à primeira cisão no grupo, tendo Raul Cerveira posteriormente convidado Me. Harada para dirigir um estágio no Judo Clube de Portugal.
Quem assistiu a esse primeiro estágio de Me. Harada, que na altura já se tinha incompatibilizado com Me. Murakami, deve ter ficado espantado pois esse professor passou sensivelmente metade do estágio a tentar denegrir a imagem de Me. Murakami, coisa que não foi conseguida, mas que deixou marcas e dúvidas em alguns, até mesmo no Comandante José Manuel Monteiro Fiadeiro, Presidente da Comissão Directiva das Artes Marciais (CDAM). Uma vez mais informei Me. Murakami sobre esta situação, tanto sobre a mudança na prática do shotokai praticado por Me. Harada, como sobre as “histórias” por ele veiculadas com intuito de denegrir a sua imagem. A resposta de Me. Murakami foi como sempre, simples, correcta e sem nada de negativo sobre Me. Harada, como se pode ler na carta inclusa nos anexos da qual traduzo as partes sobre o assunto:
«No que diz respeito ao trabalho de M. Harada também penso que ele guardou a mesma ideia que nós mas o seu trabalho é diferente; uma outra maneira. Tudo o que ele contou sobre mim não é senão pura imaginação e lamento muito as confusões e as dúvidas que isso terá criado nos nossos praticantes.
Se o Sr. Comandante (Fiadeiro) se quiser tranquilizar em relação a esse assunto só terá de escrever directamente ao Me. Egami. Assim, as coisas ficarão claras para todos.
Eu tenho a consciência muito tranquila».
Em relação a Me. Harada, por aquilo que vi e pelo contacto que tive com ele sempre me pareceu um individuo bastante “caracterial”, e estranhei bastante ele ter acedido ao convite de Raul Cerveira para vir a Portugal dirigir um estágio, isto porque algum tempo antes, durante uma visita de Raul Cerveira a Paris para participar num estágio, segundo me foi contado por Me. Murakami, encontravam-se os praticantes num café quando Me. Murakami conversando com Me. Harada indicou Raul Cerveira relatando-lhe os problemas que tinha com ele em Portugal, Me. Harada respondeu-lhe “que isso estava escrito na sua cara”.
Para a pequena anedota, se é que lhe podemos chamar assim, e para termos uma visão um pouco mais clara do feitio de Me. Harada devo contar que um dia ainda intrigado pelo facto de Me. Harada se ter incompatibilizado com Me. Egami e ter mudado a sua forma de shotokai, perguntei a Me. Murakami as razões para tal atitude. Foi-me explicado que durante uma das suas visitas ao Japão se tinha dirigido a casa de Me. Egami perguntando à porta a um aluno que lha abriu, “se o Egami sampai (praticante mais antigo) estava”, o aluno informou Me. Egami que um individuo de nome Harada tinha perguntado se Egami sampai se encontrava em casa. Me. Egami respondeu-lhe “diga-lhe que Egami sempai não se encontra, quem está é Egami Sensei”.O facto de não querer reconhecer Me. Egami como Mestre deu origem a todo o seu comportamento posterior. Penso que isso diz o suficiente sobre o personagem.
Me. Murakami tinha por hábito almoçar com o Cdte. Fiadeiro, como se vê no post scriptum da carta, no restaurante chinês Hong Kong que se situava ao lado do seu hotel, normalmente também estava presente nessas refeições e devo dizer que as relações entre ambos sempre foram excelentes, usufruindo muitas vezes o Cdte. Fiadeiro da larga experiência do Mestre no panorama federativo e administrativo do karate na Europa. Se alguma vez o Cdte. Fiadeiro ficou defraudado com as respostas de Me. Murakami deve ter sido durante uma reunião na CDAM, com a presença dos delegados nacionais, em que após várias explicações relativas ao estilo shotokai o Comandante perguntou ao Mestre, dadas as características do shotokai – trabalho muito baixo, etc – como é que um praticante de shotokai fazia combate livre; Me. Murakami limitou-se a responder “combate é combate”, e apesar das insistências do Comandante a resposta obtida foi sempre a mesma, “combate é combate”.
Em Março de 1978 um grupo representativo de um dos clubes que não tinham seguido Raul Cerveira, o Shotokai Karate Clube de Almada, liderado por José Patrão, solicitou uma reunião, que teve lugar em minha casa, sede provisória da Murakami Kai, tendo em vista a reestruturação do clube com um novo professor. No mês seguinte comecei a dar aulas nesse clube, do qual só guardo boas recordações tal era o empenhamento e o espírito dos praticantes, as aulas eram muito puxadas e tentei imprimir a dinâmica e o estilo a que estava habituado com Me. Murakami em Paris, em boa hora, pois sensivelmente um ano depois o clube já possuía quase trinta cintos castanhos; raramente vi tanta entrega por parte dos praticantes e sem fazer analogias, fazia-me pensar nos tempos áureos da Academia de Budo dos anos sessenta. José Patrão obteve o 1º. Dan em Janeiro de 1980 e muitos desses praticantes têm ou já tiveram lugares de destaque dentro do shotokai, independentemente das associações onde se encontram, e isso ainda hoje me dá um certo prazer pois foi o resultado de um trabalho correcto, consciente e exaustivo. Durante essa época a minha actividade como professor, depois da Academia de Budo, estendeu-se ao Grupo Desportivo da Siderurgia Nacional - Seixal, Grupo Desportivo da Caixa Geral de Depósitos, Shotokai Karate Clube – Almada, Escola Marquesa de Alorna (Taikyoku Clube) e um pouco mais tarde à Madeira.
A dada altura a Escola Marquesa de Alorna (Taikyoku Clube) tornou-se para mim um local para investigação, visto não ter de dar satisfações a nenhuma comissão administrativa, como já tinha sucedido no passado.
Uma das coisas mais interessantes que conseguimos, em termos sensitivos, foi obter verdadeiramente uma ligação com o oponente. Começámos por treinar o chamado “irimi simples” (antecipação do ataque) normal, seguidamente com as luzes apagadas dando ainda a possibilidade de ver os contornos do oponente graças ao kimono branco, depois com os olhos fechados e por último de costas com os olhos fechados e sem luzes na sala. Uns tempos mais tarde todos conseguiam realizar este exercício e recordo-me de José Guerra Rico vir ter comigo dizendo-me “finalmente compreendi o que é o irimi”.
No ano de 1978 a seguir à saída de Raul Cerveira, Me. Murakami pediu para nos unirmos – Gueifão, Rebola, Lima, Guilherme e eu próprio – e tentar ultrapassar divergências que pudessem existir entre nós, em vista de obter uma maior participação de praticantes nos estágios.
Esse foi sem dúvida o meu melhor ano na Murakami Kai; trabalhámos bastante em termos administrativos e treinei imenso. O meu parceiro de treinos era Guilherme Morais o qual passava por minha casa quase todos os dias, antes das oito horas da manhã, para irmos treinar para a Academia de Budo; acompanhava-me também muitas vezes ao Grupo Desportivo da Caixa Geral de Depósitos e por vezes até ao Shotokai Karate Clude de Almada.
Para podermos treinar durante as aulas o Guilherme dava as vozes durante metade do kihon e eu durante a outra metade, nos dias em que ele dava aulas em Paço d´Arcos, quando esta terminava vinha de carro até Lisboa passando pela Escola Marquesa de Alorna quando eu estava a terminar a aula e partíamos vestidos de kimono para o Kyo Shu Kan em Alvalade para treinar com o Rebola e os seus alunos mais antigos. O que é estranho nesta situação é que éramos os únicos a corresponder praticamente ao que Me. Murakami tinha pedido.
Em Agosto do mesmo ano, durante o estágio no Liceu Gil Vicente, na segunda semana destinada ao treino de katas Me. Murakami obrigou-nos, a mim e ao Cacho, a treinar a quadruplicar ou seja, os grupos de trabalho eram cinco, compostos por cintos encarnados 4ºs.kyus, castanhos 3ºs. Kyus, castanhos 2ºs. Kyus, castanhos 1ºskyus e pretos dans. No primeiro dia após os cintos negros terem executado a sua kata e quando nos preparávamos para sentar Me. Murakami chamou-nos, a mim e ao Cacho, e disse-nos para ficar para o treino da kata com os 1ºskyus, seguiu-se o mesmo com os outros grupos e isto durante toda a semana sem que ninguém soubesse a razão ou que Me. Murakami desse alguma explicação. No fim do treino no último dia quando pensávamos que estávamos finalmente livres daquela prova extenuante, Me. Murakami chamou-nos aos dois uma vez mais, para fazermos taikyoku shodan; ao executar pela segunda vez a kata, no terceiro tzuki da linha central vi um clarão, perdi os sentidos e acordei encostado aos espaldares com o Lima a abanar-me com uma toalha e o Rebola com um copo de água. No final Me. Murakami outorgou-nos a graduação de 2º. Dan e nesse mesmo dia durante o jantar nas Galerias Ritz confidenciou-me: “se um de vocês tivesse desistido, não passava nenhum”.
A partir desse ano comecei a ter problemas no seio da Murakami Kai; qualquer ideia que eu apresentasse ao grupo, no sentido do que o Mestre nos tinha pedido, era sistematicamente recusada com razões que a razão desconhece. Paralelamente, quando o Mestre vinha a Portugal para fazer um estágio eu era confrontado com questões por parte do Mestre, tais como: “disseram-me que em Almada você faz combate livre”. Se tivermos em consideração o que atrás foi dito em relação à investigação prática que tinha decorrido na Escola Marquesa de Alorna é normal que eu quisesse estender isso a outros clubes, assim em Almada, entre outras coisas, fazia-se jyu ippon kumite sem qualquer ataque predefinido e com a obrigatoriedade de “entrar” no adversário, e devo dizer que os resultados foram excelentes, infelizmente houve alguém que transverteu o que se passava e deu uma imagem completamente diferente a Me. Murakami, o que suscitou a pergunta acima referida. Tive assim de explicar ao Mestre o que na realidade se praticava e porquê, o que como é óbvio foi compreendido, mas esta e outras situações similares deram-me a entender que alguma “éminence grise” tinha conseguido que Me. Murakami nos visse a mim e ao Guilherme, com outros olhos. Cui prodest?
Esta situação arrastou-se durante anos e a Murakami Kai tornou-se para mim um hotel da dor; por vezes quando era interpelado por Me. Murakami, dando a impressão de ser uma chamada de atenção, a dita “éminence grise” olhava para mim de soslaio e sorria ironicamente, não vou citar o seu nome pois ele sabe que estou a falar dele e deve saber que os indivíduos são “aquilo que produzem, onde o produzem e da maneira que o produzem”.
Me. Murakami tinha certas ideias sobre a estratégia a observar quanto à organização do grupo; como ele próprio me contou, não era positivo que dentro do grupo algum dos cintos pretos mais antigos, tivesse mais alunos graduados em cinto negro do que os outros, segundo ele porque isso destabilizavão o grupo. Esta atitude aliada às manigâncias da “éminence grise” fez com que durante os exames para cinto preto os meus alunos fossem sistematicamente chumbados, atingindo o clímax quando em 1979 após a competição de katas, comemorativa do X Aniversário do Shotokai em Portugal, durante o exame para cinto negro, João Camacho, meu aluno, que tinha ficado em primeiro lugar na Competição, em individuais e por equipas, chumbou e Sousa Pascoalinho, que na altura era aluno de Mário Rebola, e que tinha ficado em terceiro, passou; isto espantou todos, sobretudo o próprio Pascoalinho que teve dificuldade em acreditar nos resultados. Pode parecer anedota, mas a partir dessa altura disse nos clubes onde dava aulas, que quem quisesse apresentar-se a exame para cinto negro deveria inscrever-se noutro clube qualquer que não sob a minha responsabilidade, para evitar a situação de eterno chumbado.
Ninguém é perfeito, e na minha opinião, este foi o único erro que Me. Murakami cometeu. Durante alguns anos eu e Guilherme Morais tentámos explicar ao Me. Murakami o que realmente se passava e o verdadeiro trabalho por nós desenvolvido chegando mesmo ao ponto de enviar ao Mestre, uma carta bem como um relatório sobre os estágios sob a responsabilidade de Guilherme Morais, no qual se demonstrava todo o trabalho por nós desenvolvido.
Em Janeiro de 1982 quando o Mestre chegou, em vez de conversar comigo como lhe tinha pedido na carta enviada, limitou-se a perguntar-me “porque é que lhe tinha mandado aquilo”(carta e relatório); perante uma pergunta dessa natureza achei que não valia a pena insistir e que tudo o que fizesse a partir daí seria sempre recebido com a mesma desenvoltura, logo não me restava nada mais a fazer senão afastar-me, e com bastante mágoa, coisa que foi feita nesse mesmo ano. A carta de demissão enviada ao Mestre terminava com uma citação duma regra fundamental do Jogo de Go: “ninguém é obrigado a jogar um peão sabendo pertinentemente ser-lhe desfavorável, pode-se sempre jogar noutro lado”.
Quanto a quem conseguiu os seus intentos graças a estratégias e manigâncias digo-lhe que, como diria o Cardeal de Retz, “Há favores tão grandes que só podem ser pagos com uma grande traição”, e já agora permitam-me transcrever um poema Han Shan do século VII, para que à sua luz todos possam meditar um pouco no sentido de aproveitarem a sua vida de uma maneira mais correcta:
«A vida humana está situada na confusão da poeira
Exactamente como um insecto no meio de uma bacia
Todo o dia dá voltas e voltas sem deixar de estar no meio da bacia
Os seus problemas e os seus planos não têm fim
Enquanto que anos e meses são como a água corrente
E num instante ele tornou-se um velho».
Uns tempos mais tarde estranhei que alguns indivíduos passassem sob silêncio o facto de terem sido meus alunos, não é que isso me incomodasse sobremaneira, pois como todos nós sabemos “the proof of the pudding is in the eating”. No que me diz respeito, e como anteriormente foi dito, continuo a afirmar que o meu primeiro professor foi o Dr. Pires Martins, e o meu único Mestre, Me. Murakami.
Continuo a pensar que o objectivo do shotokai é o que Me. Egami dizia:
«O problema do espírito é bastante profundo. A elevação do espírito a um alto estado, a abertura e purificação espiritual, é o objectivo final através da prática. Deves treinar espírito e corpo ou a prática não terá significado. Esforça-te por limpar a mente dos destroços da vida de todos os dias. É como lavar batatas num balde de água; deves lavar a tua mente da sujidade, entrando em contacto espiritual com os outros»,
e não, enunciar uma coisa e agir de uma maneira completamente diferente, a essa discrepância entre o que é dito e o que é feito chama-se ideologia.
Pela prática devemos tentar exprimir e desenvolver o que de melhor existe em nós passando por uma mudança qualitativa no comportamento e não reproduzir o que de pior existe na sociedade, sobretudo no seio de uma organização cujo objectivo, entre outros, é um melhor entendimento nas relações humanas.
Sempre tentei transmitir aos meus alunos que todos nós fazíamos parte de uma vasta cadeia tudo se resumindo a uma questão de transmissão; todos temos obrigatoriedade de compreender o que nos foi transmitido, e se possível contribuir com algo mais para esse movimento.
Me. Murakami faleceu em Paris a 24 de Janeiro de 1987 e está sepultado no Cemitério Intercomunal de Clamart.
Ainda hoje em dia quando me ocorrem dúvidas em relação à prática tenho por hábito visualizá-lo mentalmente e sempre encontrei as respostas que necessitava. Por tudo isto e pelo resto agradeço-lhe, esperando sinceramente que nos voltemos a encontrar.
Lisboa 15/10/2005